terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Cabeça cheia de silêncio

Na caixinha de som tocava uma música antiga do Elton John, Rocket Man tomava o ambiente junto com o perfume do café, que estava terminando de passar na velha cafeteira italiana, no chão, o cachorro castrado teimava em sentir um desejo que deveria ter sido suprimido no dia em que arrancaram suas bolas. Ranço, não do bicho, mas das notícias que lia no celular, acho que era sadomasoquista, pois quanto mais surreal fosse a matéria, fazia questão de ir nos comentários para ler as pessoas destilando ódio. O pão queimou na torradeira. Puta que pariu. Dia normal, virou os olhos, começou. Era dia de trabalho, a escala era ingrata, mas era o que restava da vida. Trabalhava em uma empresa de segurança, regime de 12 por 36. Chegava, dava um bom dia monocromático, igual ao seu uniforme, mal cortado, horrível. Todo uniforme de segurança tem uma vontade de ser fascista ou nazista da SS né? Aquela cor cinza, com vontade de se impor, mas que tira ainda mais a autoridade de quem o usa. Fazia questão de usar uma meia branca, para lembrar da época em que via o porteiro do prédio usando a peça na calça azul de brin ou outro tecido sintético vagabundo. Foi. Foi um dia alguém, foi um dia um profissional respeitado, foi uma voz que era ouvida. Tudo cessou, perdido na bebida, que ele mesmo foi atrás, tudo que restou um belo dia foi virar segurança privado, pois nem carro tinha para ser um uber. Desamor dentro dele, uma vida de solidão. Almoço de marmita de arroz, feijão velho e uma calabresa, que havia comprado um saco de dois kilos, e todo dia tirava duas do freezer para colocar no tupperware falsificado e manchado eternamente de molho de tomate. Trabalhava o dia todo sentado em uma cabine claustrofóbica, escura, que quando chegava de manhã, tinha um asco do cheiro do profissional do turno da noite. Perfume e desodorantes baratos, misturados com cheiro de humano, flatulência que ficava enclausurada na falta de ventilação da cabine, tudo isso na monotonia e com um sono, que sumia na noite e retornava no dia, companheiro, de tudo que não tem mais. Celular era proibido no trabalho. Não deveria ser usado, pois além de distrair, a transportadora não permita. Olhava o monitor, caminhão de carga entrava, caminhão de carga saia. Voltava os olhos para janela, via os funcionários, prestava atenção de forma burocrática, nem queria que ninguém fizesse nada que o obrigasse a intervir. Era zero pretenção em ser herói. Fumava um cigarro durante as folgas do café. Eram os dez minutos em que fazia mais questão. Ouvia os papos, conversas toscas sobre cotidianos toscos.Não interagia e nem era convidado a participar. Certa vez, um antigo funcionário que sentava do lado dele no almoço e pouco falava, chamou para um churrasco de colegas de firma. A gente arrecada dez reais para carne e cerveja e todo mundo se diverte. Pagou, no dia de ir ficou com preguiça de pegar dois ônibus para ir lá em jardim de deus me livre e não foi. Café amargo, um cigarro, uma preguiça de voltar. Ainda faltavam 9 horas de trabalho arrastado. Queria ler um livro, queria ler uma notícia, queria dormir na cama em que não fazia mais quando acordava. Ia chegar e deitar lá. Ficava não poucas vezes sem banho na folga, preguiça, depressão, falta de higiene? Não estava nem aí mais com julgamentos. Perdeu as vontades, sentou na cabine para continuar o trabalho. O trinta e oito na cintura era o que tinha de mais valor na cabine pensou, e foi mais além e refletiu que valia mais que o próprio dono da cintura que o carregava. Tirou, abriu o tambor carregado, girou, uma, duas três vezes, fechou, no lugar de guardar no coldre, colocou o cano na boca, disparou. Acabou tudo. Mas antes do cérebro desligar por completo, ouviu os gritos de quem tentava arrombar a porta aos chutes, ficou tudo preto, as vozes sumiam ao longe. O dia de um homem amargo se encerrava antes do fim do expediente. O último luxo de uma vida sem luxo.