Seria necessária muita paciência e coragem para continuar naquela embromação. Mas que coisa isso. Era um casamento ou uma repartição pública, com despachos, normas, regras e relatórios. Simplesmente tinha se cansado da velha companheira. Muito velha diga-se. Não tinha mais desejo nas carnes flácidas e com cor de pano de chão sujo. Olhar para as pernas ainda grossas, mas sem a vida que enxergou há mais de 45 anos naquela tarde na praia. Hoje as pernas chamam mais atenção pelas varizes, que parecem gordas minhocas do que pela beleza que ali não habita mais.
Como se livrar de 45 anos de casamento sem ser um trauma? Era seguro? Iria viver feliz com isso? Sim pois acabaria com a vida de uma pessoa que lhe deu a vida em forma de devoção. Não seria algo fácil. Nunca havia traído ela. Talvez sinceramente seria muito mais fácil se fosse um cachorro sem vergonha destes que saem com qualquer uma e pronto. Infelizmente não era. Era sim temente a deus de uma forma inimaginável para quem faz uma analise deste ponto da mulher amada.
Igreja aos sábados e domingos. Era uma espécie de ajudante do padre. Lia a homilia, ajudava a abrir e fechar a igreja não tinha final de semana que não fosse. Quando viajava finais de ano, ficava com peso na consciência por não estar lá. Como se separar? Como fazer algo depois de jurar amor eterno. Para as picas com o amor eterno. Isso não existe, mais uma verborragia dos amantes e escritores de livros de banca de jornal. A princesa é uma grande massa de carne, que apodrece dia após dia, junto com o amor.
Filhos? Criados, com a vida feita, e apenas seguem um ritual de ir visitar final de semana sim final de semana não e nas datas especiais. E olhe lá. Não ligariam se ele deixasse a mãe com o belo duplex e fosse morar na praia. Aliás, esta seria uma boa opção. Ficaria na praia e eventualmente viria para casa passar alguns dias com ela. Não queria se separar pelo sexo e por uma vida boemia. Nunca teve isso, não sentiu falta da esbornia uma única vez na vida, não seria agora com sessenta e cinco anos que seria isso que o levaria a jogar um casamento na latrina.
Ah saudades ele tem dos dias em que pescava sem compromisso, tomava a sua cerveja sem a mulher perguntar quantas já bebeu, quantas ainda faltam para ele dormir e roncar como um porco. Nunca faltou ao respeito com a mulher, mas mentalmente não deixava de xingá-la. Falando em respeito, não faziam sexo desde que se casaram. Faziam apenas um puro e casto amor. Nada excepcional. Nunca fizeram mais de duas vezes na semana. Raras as vezes treparam em um dia que não fosse um sábado. Talvez nos primeiros seis meses de casados.
Maldita fé, maldito amor ou respeito que ainda o prendiam. Não queria simplesmente separar os corpos. Até por que não faziam sexo há quase dez anos. Como se livrar deste estorvo que chama de mulher? Ele sabe sim. Mas tem medo de pensar nisso. Acha pecado. Mas vai levar adiante isso.
Foi até um subúrbio. Daqueles bem horrorosos mesmo que ele só via no jornal popular das seis da tarde. Depois de aposentado aprendeu a gostar dos jornais mais sem vergonhas. Uma forma de se sentir bem com sua condição de classe-média-média. Lá andou uns tempos, mais precisamente duas semanas até achar uma casa antiga para comprar. Fechou o negócio rápido, colocou a casa em seu nome mesmo, sem grandes traumas apenas não deixou a escritura em casa. E começou a “morar” naquele fim de mundo do extremo leste da cidade como se ali fosse sua casa. Saia da zona sul de manhã cedo, e ia para sua casinha. Deixava o carro no Metrô, e ia de ônibus até aquele fim de mundo e passava o dia lá. Para mulher falava que estava dando consultoria no escritório de um amigo. Sentia-se mal ficando sem trabalhar ela sabia.
Ficou nesta coisa durante quase dois anos. Conheceu aqueles pobres, bebeu com eles nos bares de porta de garagem, contava piadas, vivia uma vida miserável, sem ostentação. Nunca levou ninguém em sua casa. Não aparecia nos finais de semana, mas contava a historia que era viúvo e nos feriados e finais de semana ia visitar uma filha que morava em uma cidade do interior. Enfim inventou e viveu uma vida que seria digna de um romance.
Neste período fez amizade com Paulo. Paulo Lombriga como era conhecido. Um branquelo sem metades dos dentes e com tantas passagens na polícia quanto dentes na boca de uma pessoa normal. Bebiam juntos, sempre pagava uma cerveja, um rabo de galo ou um bombeirinho para o Paulo. Afinal, ele era um aposentado da Viação Cometa, tinha uma aposentadoria medíocre, mas que naquele fim de mundo era algo que mais de dois terços da população não tinha.
Falou para Paulo que queria cavar um poço no quintal, pois não queria pagar água para o governo o resto da vida. Já havia visto outras casas com poço, então sabia que tinha água naquela terra infeliz. Pediu ajuda do bandido que fazia bicos como pedreiro e cavaram um poço de quase 12 metros de profundidade. Mas não acharam água alguma. Nem lençol freático nem nada. Já sabia que não tinha nada ali. Por isso não pediu uma caçamba. Já tinha traçado o plano.
Ia para casa na noite de sexta-feira e chamaria sua esposa para jantar. Era uma desculpa mal arranjada, mas era a melhor que tinham. Tinha mesmo pouco tempo para fazer a coisa. A mulher tinha que ser morta naquela noite. Ele iria de madrugada para seu reino imaginário do subúrbio e lá jogaria o corpo da antiga companheira no buraco do poço. Tinha que ser rápido, pois precisava jogar um pouco de terra em cima antes que Paulo chegasse na manhã do sábado para ajudar a cobrir o poço sem água.
O comparsa Paulo não sabia de nada e ele estava disposto a largar aquela vida mediana que tinha do outro lado da cidade e viver um pouco nesta nova realidade. Gostava de uma cachaça sem grife, mas servida com calor humano. Adorava um torresmo, uma liguiça frita em um óleo sujo com cebola. Tudo sem luxo, mas com gosto de gente normal sem afetações. Estava se desfazendo de um escudo armado ao longo de uma vida de distância do ser humano do subúrbio e vindo para um canto que sua alma desconhecia. Ia se livrar daquele vinculo desagradável que era sua mulher e quem sabe, neste final de vida, ia se redescobrir.
Levou-a para jantar e saiu com ela do restaurante na maior das normalidades. Ensaio tudo. Pegaram uma rua deserta e lá pegou discretamente o 38 frio que estava guardado no porta-treco do lado do motorista e parou o carro com alegação que tinha problemas mecânicos. Fez o carro morrer inúmeras vezes enquanto tomava a decisão de matar aquela que o prendia na classe média.
Até que a mulher sugeriu que ele fosse ver o que acontecia no carro. Ele aceitou prontamente, abriu o capô do carro. Em meio a uma confusão de pensamentos de como seria sua vida de solteiro, uma ponta de medo, remorso e arrependimento queria invadir seu ser. E quando se preparava para sacar o revolver e ir até o lado do passageiro, onde estava a futura ex-companheira foi surpreendido por dois crioulos anunciando o assalto.
Como isso? Quando esboçou a idéia de tentar falar com os dois negros um já havia percebido que estava armado, gritou que era policial e deu-lhe dois tiros na cara. A mulher que em pânico gritava tomou outro tiro na orelha.
Descansam hoje no jazido da família, juntos, enquanto os filhos se desfizeram do apartamento, carro e sitio. Mas depois de seis meses que venderam tudo souberam de uma casa no subúrbio. Conseguiram um bom preço pela casinha, ainda mais que ela tinha um poço artesiano com água pura e cristalina, coisa rara naquele fim de mundo.